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domingo, 17 de março de 2019

A inocência de um olhar - Parte 2


A inocência de um olhar





2


Sim… Eu sentia que ela estava ali em algum lugar. Eu sentia que aquilo ainda estava me observando. Eu podia sentir minha nuca arrepiar.
Ah, meu deus! Os meus amigos… A minha família… O que direi à eles? Que depois daquele acidente eu vi a Morte carregar uma criança nos braços cujo corpo sem vida sorriu-me com o rosto ensanguentado? Que aquela jovem criança se tornou em uma maldita criatura repugnante que em todas as noites me observa nos cantos mais escuros de minha casa?
Dirão que enlouqueci!
Depois que sua mulher saiu de casa você enlouqueceu. Tudo o que fizera foi afastar-se dos amigos e trancar-se em sua casa sem ao menos ver o sol. -Eles dirão.
Mas a pior parte nem era mesmo eles descobrirem sobre isso. Por mim tanto faz se me acharem louco, mas o maior problema era ver aquela maldita criatura encarando-me a alma e nos confins de meus segredos encontrar minha alma e absorvê-la.

Olhei atentamente para ter certeza. Ela sorria em meio à escuridão que pairava nos cantos das paredes da sala.
23h27m. Ela ria como uma pequena diaba sem pudor, o que fazia-me sentir uma raiva profunda. Talvez fosse diz o ditado, que o diabo te provoca para obter o que ele quer. E o que eu queria era que tudo aquilo acabasse rápido.
Liguei então a televisão para tentar me distrair e esquecer daquela maldita criatura. Durante a transmissão do jornal, repleta de más notícias, notei que havia algo muito diferente que deixou-me inquieto. Mas o que seria?
Junto à William, o âncora do jornal, havia uma linda mulher de aproximadamente quarenta anos. Seu nome era Gabriele. Ela usava um vestido preto com alguns detalhes em branco na borda do decote e seu cabelo, outrora uma cascata de ouro líquido, agora era tomado pelas chamas avermelhadas da paixão que invadia o coração dos telespectadores. Eu assistia a transmissão maravilhado com a beleza daquela mulher, que parecia ficar bem em qualquer roupa e com qualquer cor de cabelo.
Comecei então a me sentir cansado, um pouco sonolento. Minha cabeça começou a doer, uma dor que parecia aumentar a cada minuto. A imagem da televisão começou a distorcer e a tomar um borrão estranho, fazendo-me levantar para dar um leve tapa no canto da TV. Sentei-me novamente esperando que o tapa resolvesse, mas não resolveu. A imagem distorcida passou a soar as vozes dos apresentadores de forma estranha, um som distorcido que eu mal podia entender. Olhei para o lado e vi a maldita criatura ainda parada no canto da parede, mas ela agora estava séria. Muito séria.
A imagem borrada e distorcida da televisão apresentou os rostos dos apresentadores como dois demônios, como em um filme de terror. Meu coração disparou e fui tomado por uma onda de adrenalina quando notei que a menina já não estava mais a me atormentar. Tentei me levantar, mas sem sucesso. Senti o impacto de minha cabeça ao chão e com um zumbido no ouvido, eu continuava a ver os demônios do jornal rindo com a boca preta e os dentes podres e rindo com a boca aberta, eles começaram a cuspir um caldo grosso e verde que parecia fervente por causa da leve fumaça. Aquela nojeira escorria em suas roupas sociais caríssimas e com a cabeça jogada para trás como se a coluna estivesse quebrada, eu adormeci.

Na tarde seguinte eu acordei me debatendo no sofá. Meu coração estava acelerado e eu muito assustado. Olhar para todos os cantos da sala e na direção da cozinha e a única coisa que eu conseguia ver junto à dor de cabeça era os raios de sol invadindo a minha casa pela janela. A TV estava desligada e tudo estava no lugar como se nada tivesse acontecido.
Levantei e caminhei até a cozinha para tomar remédio. Um comprimido e um copo de água fresco e pronto, em poucos minutos eu me sentiria novo.
Já se passava das uma da tarde quando me dei conta que eu estava atrasado para o trabalho. Um trabalho cansativo que me oferecia um salário baixo e folga somente aos domingos. Corri para o carro enquanto eu terminava de colocar uma blusa fina xadrez azul escuro. O motor ameaçou a ligar mas não ligou. Tentei novamente e no desespero de fazer aquela lata velha pegar, acelerei e quase acertei o carro estacionado perto da calçada ao lado. Peguei a rua reta e fui embora como se não houvesse amanhã e quando cheguei no trabalho, a secretária de meu chefe havia dito que ele gostaria de conversar comigo. Pronto. Estou demitido. -Pensei.
Eu já havia esquecido de absolutamente tudo o que havia acontecido na noite anterior. Eu só queria saber o que o meu chefe queria comigo.
-Você está atrasado.
-Sim, chefe, eu sei. E peço desculpas.
Era essa a conversa que teríamos.
-Você está bem? -Perguntou ele, me pegando de surpresa.
-Sim… Acho que sim, por que? Parece que não estou?
-Você parece um pouco cansado. Aqui, pegue. Beba um gole desse uísque e vá para a sua sala como se nada tivesse acontecido. Certo?
-Obrigado chefe.
Uísque? No trabalho? Eu sendo bem tratado? Pelo meu chefe? Não… AQUILO sim era loucura.
Caminhei até o meu escritório onde trabalhei até às nove horas da noite. Ao cair da noite, o céu ameaçava tempo de chuva. Acelerei o meu carro para chegar o quanto antes em casa. Os papéis de relatórios que eu terminaria em casa não podiam molhar ou eu estaria ferrado.
Segui a Avenida XXI quase até o final quando a chuva começou de repente. Os feixes de luz a cada trovoada e a água escorrendo na sarjeta anunciavam um grande temporal.
Virei então na direção da Rua Julio Paes quando me deparei com uma jovem criança que se desgarrou dos braços dos pais no desespero de chegar em casa -que estava há poucos metros- antes que um raio caísse em sua cabeça.
Joguei o meu carro para a direita na tentativa de desviar da menina.
Eu não podia acreditar…

Aquilo iria começar de novo.


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Escrito por: Joey Spooky Rose